domingo, 13 de maio de 2012

Lyonel Feininger e Gustave Verbeek


A primeira década do século XX foi, na opinião desse crítico, a mais espetacular na história dos quadrinhos. A força repressora do capital ainda não havia se solidificado na figura dos sindicates, que mal haviam se constituído, e os artistas criadores tratavam diretamente com os editores dos jornais. Esses mesmos sindicates, em pouco tempo, modificariam radicalmente esse cenário, servindo de distribuidores do produto-quadrinhos e criando demandas que deveriam ser seguidas à risca pelos artistas, com o risco de serem jogados no ostracismo. Evidentemente, os editores de jornal não são os mecenas dos sonhos - a maior criação de Dirks é uma encomenda de cópia de uma tira européia - mas o público acabava elegendo suas tiras favoritas, dotando os criadores acabavam tendo um poder de negociação muito maior. Os sindicates são os atravessadores da cultura, como os curadores da arte contemporânea dos dias de hoje, castrando o artista-criador do contato com o meio e colocando-o na redoma de cristal que só o ajuda a produzir o produto encapsulado e anêmico da imaginação pouco febril dos próprios atravessadores de cultura. O marketing também pode cumprir com perfeição o papel de emasculador cultural, ainda com mais potência se tiver o auxílio da pedagogia. De qualquer forma, foi a própria competição capitalista entre os dois maiores magnatas da imprensa que catapultou a produção de quadrinhos, e o caso de Feininger, que foi pescado em Berlim por um editor do Chicago Tribune de olho na enorme fatia de leitores alemães residentes na cidade, é exemplar. A "criação de demandas imaginárias", tão vilipendiada pelos seus críticos menos argutos do capital, é, sem sombra de dúvidas, a maior impulsionadora da criação de obras de arte desde, pelo menos, a Antiguidade. E isso não seria diferente, muito pelo contrário, com uma arte industrial como os quadrinhos. Já que citamos Dirks, foi para concorrer com seu Katzehammer Kids que Feininger foi chamado. De quebra, conseguiu criar duas tiras, Kin-der-Kids e Wee Willie Winkie's World, que concorriam em sofisticação com o olímpico MacCay e inspiraram o furor criativo de Herriman.




Lyonel Feininger (1871-1956, New York) é um desses casos de inquietude do qual a arte moderna (e a contemporânea) é tão devedora. Pintor, gravador, fotógrafo e músico erudito, Feinninger é filho da segunda leva de migrações em massa que lotou as cidades americanas e ajudou a criar o público necessário para o meio jornalístico e de cartuns, que a geração posterior, a de Opper e do próprio Feininger, iria estruturar e revolucionar por mais de 30 anos.
Sua inquietude pode ser notada em sua própria biografia. Feinninger nasce em Nova York, filho de músicos eruditos alemães (a mãe era cantora lírica e o pai violinista) e aos 17 anos muda-se para Berlim para matricular-se em uma universidade de música . Feininger abandona a arte dos pais para dedicar-se ao estudo das artes plásticas em diversos cursos e academias. Entretanto, é com caricaturas e desenhos para o jornal que sua carreira se inicia, aos 20 anos. Ao ser procurado, em 1906, pelo editor do Chicago Tribune, Feininger já é um chargista de reputação sólida, e recebe a encomenda de criar uma tira para o jornal. Após nove meses, graças a sua recusa em mudar-se para os Estados Unidos - os cartunistas trabalhavam diretamente na redação - a tira é interrompida. Feininger ainda iria viver na Alemanha por muitos anos, até a subida do partido nazista ao poder e o uso de sua gravura na capa do catálogo da célebre "Exposição dos Degenerados", em 1936, promovida pela propaganda do III Reich. Feininger retorna aos Estados Unidos no ano seguinte e nunca mais volta à pátria de seus pais. 
O período de Feininger que nos interessa, portanto, é muito curto.Inicia-se em 1906, quando o artista contava com 35 anos,  e termina nove meses depois, com a interrupção de suas duas assombrosas criaçãos: The Kin-Der-Kids Wee Willie Winkie's World.


















A primeira coisa que salta aos olhos na tira é a extrema estilização, herdeira tanto do Art Deco internacional quanto do expressionismo europeu. Essa já é uma contribuição incomensurável para um desenho ainda vinculado as raízes da gravura francesa do século XIX. Os americanos conheciam, e bem, tanto a "arquitetura de engenharia" quanto os produtos Deco, mas levar a ponta de uma produção ainda não assentada  na cultura - como o Art noveau de MacCay era há décadas - foi uma ousadia tanto de Feininger quanto de seus editores. De toda a forma, os manuais de História da Arte tratam o expressionismo como uma irrupção da subjetividade sobre a realidade observada, criando uma arte muito mais de volição do que de consciência. O abandono das regras de anatomia e perspectiva, um obstáculo a essa subjetividade selvagem e essa arte feita da vontade, passa de uma opção filosófica a um "estilo" internacional, como aconteceu com toda a arte ocidental. O expressionismo de Feininger, no entanto, não é simples opção por uma moda europeia, mas uma autêntica adesão a uma liberdade, a um fluxo criativo, como podemos notar não somente em seu magnífico desenho mais na trama insólita de ambas as tiras. Na verdade, os personagens de Feininger não tem aquela tridimensionalidade, aquela interioridade que apresentam os personagens das narrativas tradicionais. Eles são muito mais imagens do que personagens. Sem uma trajetória que justifique seus atos presentes ou seu aspecto tão estapafúrdio quanto das próprias tiras. E é a Liberdade da Imagem que vemos no menino robô Little Japansky, pescado no mar pelos outros personagen quando ainda era somente um mecanismo de relógio (talvez o primeiro robô-herói dos quadrinhos), ou o sensacional Mysterious Pete, um soturno cowboy, sempre envolto em sua capa e com o chapéu mau deixando ver os olhos ameaçadores. E Mysterious Pete, não é, como podem pensar os apressados, o antagonista dos heróis da tira, mas seu mentor e protetor. Existem ainda Strenuous Ted (uma caricatura de Ted Roosevelt), e Daniel Webster, o mais esperto dos meninos, já que leva o nome do tradicional dicionário. Um cachorro chamado Sherlock Bones e assim por diante. Todos eles viajam em uma grande banheira, incumbidos de uma missão misteriosa por Mysterious Pete. Um par de velhas carpideiras acompanha á distancia as aventuras dos meninos, às vezes informadas de forma telepática por Mysterious Pete, e assim por diante. A trama não tem o menor sentido, filosófico que seja, e as "aventuras" assemelham-se, como já frisamos, mais a imagens, a gags visuais absurdas do que propriamente a capítulos de uma saga desenvolvida. Apesar da interrupção prematura da tira, nada indica uma resolução ou sequencia causal entre os eventos em algum futuro. Kin-der-Kids é sensacional, e o frescor de seu desenho assemelha-se às melhores criações infanto-juvenis contemporâneas, principalmente a desenhos animados geniais como Bob Esponja,  Flapjack e outros. 




Wee Willie Winkie é a mais famosa música de ninar de língua inglesa, composta na Escócia no século IX, sua fama tornou-a quase anônima e produto da cultura. Feininger transforma Willie Winkie em um estranho garoto com feições envelhecidas, que se maravilha com um mundo totalmente antropomorfizado. 
Ainda que as pranchas de Willie Winckie tenham a mesma estupenda qualidade de desenho e diagramação que Kin-der-Kids, Feininger opta por uma forma mais tradicional - e mesmo antiquada - de inserir o texto, com quadros explicativos abaixo ou acima das figuras. Esse texto, por sua vez, também têm um teor mais tradicional, algo calcado nos livros infantis de contos de fada.  
De qualquer forma, e ainda que as intenções não sejam as mesmas de Kin-der-Kids, as duas tiras formam um corpus excepcional e uma enorme contribuição para a história dos quadrinhos e, por conseguinte, para a Cultura Ocidental. 
Dorival Caymmi dizia que queria compor uma música tão simples e eficaz quanto "Ciranda Cirandinha". Feininger criou algo tão complexo e desmedido como a fantasia das crianças que cantam essa canção.


..................................................................................................................................


Um outro exemplo do tipo de ousadia que os quadrinhos eram capazes em seus primórdios era a tira mais famosa de Gustave Verbeeck, " The Upside Downs of Little Lady Lovekins and Old Man Muffaroo", que foi publicada de 1903 a 1905 no The New York Herald. A história, que podia ser lida em dois sentidos, tinha como protagonistas uma menina de chapéu de fita e um velho bigodudo, que trocavam de ligar quando se virava o jornal de cabeça pra baixo, assim como a canoa em que navegava Mufarro se transforma no bico do pássaro gigante que captura Lovekins e assim por diante. abaixo, exemplos da tira nos dois sentidos. 



Existe um determinado tipo de crítica de arte que pode ser chamado de classicista (e a proximidade com o preconceito social não é somente sonora, como veremos adiante). Essa crítica acredita na evolução gradual de determinadas formas de expressão que atingiriam um píncaro depois de um período de aprendizado e purificação, fatalmente decaindo logo depois desse seu momento clássico, por assim dizer. Gente culta, progressista e importante para a arte moderna acreditou nessa leitura, assim como acreditava que as esculturas gregas do século V eram obras do mais puro bom-gosto e desinteresse estético, e que não eram adornadas com pedras preciosas, pintura multicolorida e mesmo jogos de cenas e luzes nas câmaras que as guardavam. Posteriormente, os avanços da arqueologia desmistificaram a falsa pureza da arte grega clássica, mas o conforto da ideia permaneceu. Sendo aplicado mesmo a áreas e arte anti-clássicas por excelência, como o rock e os quadrinhos. Não por acaso, e esse é o ponto que quero chegar, essas artes germinaram em um solo ausente do cânone europeu, e, felizmente, alheia à ele, quando não abertamente adversária. 
Pois bem, uma crítica de arte classicista, iria considerar "The Upside Downs" uma obra maneirista, que troca a Verdade Estética por truques de prestidigitação e divertimento, como tanto se queixava Kant da arte cortês do século XVIII, sua contemporânea. Kant, evidentemente, era um homem de seu tempo. Um eurocêntrico, algo filisteu, que buscava libertar o próprio pensamento do prisão cristã da alma, assim como Darwin e tantos outros. Que os argumentos tanto de um quanto de outro sirvam para julgar obras de arte no pós-pós-estruturalismo, na época do genoma e do benfazejo multiculturalismo faz parte do provincianismo colonizado e classista de que venho falando. 
De qualquer forma, não é a perfeição da Forma ou da Ideia que os melhores quadrinhos do começo do século XX buscam, porque eles não buscam nada além de conquistar o público mínimo para sua continuidade e, portanto, a subsistência de seu criador. E é justamente esse caráter anti-filosófico, no sentido forte, marxista se preferirem, que, na minha opinião, fez o melhor dos quadrinhos daquele início de século. Abaixo, mais duas criações do nascido japonês e filho de missionários holandeses Gustave Verbeek (1867, Nagazaki, 1937, New York). Nelas, podemos notar um outro procedimento, próximo tanto das crianças quanto das futuras manifestações surrealistas, a metonímia brincalhona, quase sempre envolvendo animais. A proximidade de objetos radicalmente diferentes pela proximidade sonora faz a alegria inclusive dos adultos, que se divertem com as confusões dos filhos durante o aprendizado. A violência e o mau-gosto de várias histórias também remetem ao linguajar e ao psiquismo infantil, além de ligá-los indefectivelmente à sua própria época, onde uma boa piada no jornal, aparentemente, deveria culminar com alguém ferido ou tomando uma surra. A singeleza do desenho de Verbeek só acrescenta graça e radicalismo às suas propostas.








Nenhum comentário:

Postar um comentário