terça-feira, 2 de abril de 2013

ah! se meu estenógrafo falasse - os primeiros anos das tiras protagonizadas por garotas



Em 1902 Gene Carr, estrela dos nascentes quadrinhos para o New York Herald,  lança "Lady Bountiful". O nome é uma expressão corrente, provavelmente nascida de uma comédia de costumes francesa do século XVII, usada para designar ricas e generosas senhoras. As comédias européias transferidas para os teatros de vaudeville proliferam em Nova York, que tinha mais teatros que Paris, já naquele início de século. Também era comum sua abdução pelos quadrinhos, ainda mais como seus personagens viravam figuras de linguagem popular, como em Bring Up Father, Katzenhammer Kids e tantos outros.
Lady Bountiful, de qualquer modo, é a mais antiga das tiras protagonizadas por mulheres que se conhece  e tem lindos momentos no desenho de traços delicados, que circundam graciosamente áreas de cor plana e desenham com esmero os rostos esfígicos como os de embalagem. Rostos esses que nos remetem, também, às personagens femininas de "Buster Brown", de Outcault.
É da opinão desse crítico que Carr guarda o melhor de seu talento para o belo traseiro de Bontiful, ainda mais ressaltado e delineado pela saia (no qual o autor se esmera nos drapejados) e no recorte anguloso da cintura, como podemos averiguar nos desenhos à seguir. O desenho voluptuoso de Bountiful transforma a mecenas em uma antêntica heroína dos quadrinhos, como as divas de aventuras do futuro, com a equação de mulher rica + gostosa + gente boa.




Além da bela bunda suntuosamente achurada de Bountiful, o original acima é testemunha da liberdade anterior à sistematização que os quadrinhos conheciam em seus auspícios. Os desenhistas trabalhavam na redação, e os espaços em branco do caderno tinham que ser ocupados da melhor forma possível.

No ano seguinte (1903), o veterano F.M.Howarth, que como Opper havia saído diretamente das revistas humorísticas como Puck para as páginas dos jornais, lança, com seu estilo particularíssimo "TheLove and Lulu and Leander"



Howarth, como dissemos, provêm do meio intelectualizado - em contraste aos jornais - das revistas de humor, e seu traço já é uma grife quando começa a trabalhar com cartuns. Howarth é um artista especialíssimo e que pode conseguir efeitos maravilhosos e totais em uma página impressa. Sua sacada das enormes cabeças expressivas sustentadas por corpos que servem como aparatos para a vestimenta social e a trama da história do personagem foi retirada, provavelmente, dos teatros de marionetes dos vaudevilles, e seu efeito de lanterna mágica supera muitos problemas que outros artistas encontraram, justamente, para dar expressão adequada ao personagem dentro do espaço restrito de um quadrinho. Somente esse dós-de-peito técnico de suas cabeçorras já colocaria Howarth como um protagonista da história dos quadrinhos, mas a graça dos enredos e a naturalidade com que o artista desenvolve seu estilo mostra como a história de um meio pode ser inferior ao mesmo.
abaixo, mais uma história sesacional de Howarth, de 1904.



Como dissemos antes, Uma descoberta técnica em arte nunca deve ser menosprezada. Howarth, dá um passo decisivo, ao concentrar o humor nas feições dos personagens, deslocando-as das ações, que podem apresentar frieza e distancia devido justamente a dificuldade em se colocar um personagem no espaço diminuto do enquadramento. As cabeçorras, desde então, vão serferramenta de alguns dos melhores quadrinistas de todos os tempos, como  Schulz, de "Peanuts".

Á partir de 1907, Nell Brinkley, uma excepcional ilustradora nascida no final do século XIX  lança "Sunny Sue", uma página entre o cartum e a ilustração, de conteúdo explosivo. Sua personagem, apesar de, como as personagens anteriores, estar longe das agruras do mundo laboral, tem muito menos necessidade de, digamos, prezar pela discrição típica de uma dama do século XIX. Sunnie Sue é uma boêmia, amante do Jazz e da arte moderna, dos hábitos leves dos anos loucos, com vestidos e cabelos curtos e esvoaçantes. Suas conquistas amorosas são leves para ela, e pesadelos para os pobres homens ainda presos aos códigos cavalheirescos do século anterior.  O Art Noveau de Brinkley apresenta as deformações e a dinâmica do design do industrialismo, o Deco internacional, tornando muitas vezes as musas de Brinkley algo diabólicas. Afinal, ninguém alí queria ir para o céu, mas qualquer lugar que a beleza, o bom-gosto, e o dinheiro pudessem levar.


Sunnye Sue não é do tipo que acha que galãs de cinema são somente para serem olhados.


Mas não eram somente de festas, benemerências e jogos amorosos que viviam as primeiras heroínas dos quadrinhos. Para cada nova liberalidade conquistada pelas meninas da classe alta, novas obrigações surgiam para as camadas mais pobres, e a mulher conquista cada vez mais o direito de trabalhar, escolher os seus representantes por meio do sufrágio (a própria  Nell Brinkley tem uma ilustração famosa sobre isso) e ajudar a família fora de casa. enfim, a mulher ganha as ruas, e também o mercado de trabalho. Evidentemente, as coisas não eram mais fáceis do que são hoje em dia, e os trabalhos se reduzem a algumas atividades secundárias, principalmente em escritórios. 



"Sallie Snooks, Stenographer", de Dink Shannon foi publicado pela primeira vez em 1907, e tem as características dos cartuns de sua época. O desenho brutal e direto, como que carimbado na página, além do humor singelo, ainda que igualmente bruto, quase violento em seu sexismo e realismo sem peias. Mas os grandes artistas costumam a ter todos os defeitos de sua época, e se Shannon não é o mais talentoso dos desbravadores das tiras protagonizadas por garotas, seus trabalhos são dos mais saborosos. O que nos leva a uma declaração muito interessante do crítico de arte Clement Greenberg sobre Hopper: "Hopper simplesmente não é um bom pintor. mas se fosse o melhor, ainda assim não bastaria". O que ele quer dizer que ser um grande artesão não basta para ser um grande artista. Aliás, muitos grandes artistas sequer são sumidades técnicas, ou mesmo extremamente originais. A graça de um patrão apaixonado que demite a estenógrafa bonitona aos prantos, dando dez meses de salário tem a graça de um tropeção engraçado de uma figura desagradável. O humor de Shannon, como o de tantos outros, é o do bordão, da repetição do mesmo. A bela estenógrafa que é demitida por ser bela, o rato que joga o tijolo na cabeça do gato, o menino que acorda do sonho. E isso também não pode ser uma régua de qualidade estética. 



Os artistas aqui mostrados, entretanto, são anteriores á sindicalização das tiras de jornal. Por mais que suas criações servissem  para competir com as de outros jornais, ainda não faziam parte da frenética demanda que viria nos próximos anos. Ainda não eram "girls strips". Eram  tiras protagonizadas por garotas. 


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