terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O Século XIX era a uma parada batuta

A crítica de arte pode ser uma atividade muito preguiçosa. Você pode se concentrar somente nos aspectos visuais da obra, ou abster-se simplesmente de fazer uma interpretação, argumentando que isso violentaria a integridade das intenções do artista. Escrever diretamente no blog pode ser também uma forma de evasiva, mas o objetivo aqui é, na verdade, pensar um possível curso de história dos quadrinhos e criar um lugar onde possa rascunhá-lo e, também, de certa forma arquivá-lo.
Realmente não parece tão diferente dos motivos da crítica preguiçosa, mas cada um que carregue o peso de suas decisões.


obra de Rodolphe Töpffer

Em primeiro lugar gostaria de me afastar de alguns historiadores dos quadrinhos que vêem precursores dos gibis em períodos anteriores à revolução industrial. A arte sequenciada dos egípicos, as colunas triunfais com suas narrativas das conquistas romanas e as grutas do paleolítico não são antecessores porque o cenário social de sua feitura não encontra nenhum correspondente na sociedade moldada durante o capitalismo industrial. Da mesma forma, não podemos afirmar que esculturas do paleolítico, pelo escasso conhecimento que temos da vida no período, sejam obras de artistas. Os Artistas, no nosso entender, são pessoas especialmente preparadas em técnicas pertencentes a tradição que compartem com outros artistas, em menor ou maior grau, ou pessoas do mesmo metier (críticos, curadores, galeristas). Da mesma forma, as pessoas que jogam futebol no domingo não são futebolistas, por mais talento que tenham. Na sociedade de divisão de trabalho é assim que acontece, para o mal ou para o bem.

Portanto, quando colocamos frisos egípicos no museu, ou viajamos para vê-los em corpo presente, estamos colocando-o na tradição dos objetos de culto da arte. Da mesma forma, quando Lichenstein pinta quadros que remetem diretamente aos quadrinhos, está fazendo pintura. Feita para ser pendurada, iluminada e cultuada, como eram os ícones das sociedades religiosas (porque a arte, como diz Alfred Gell, é a religião da sociedade laica).

Portanto, para esse autor, os quadrinhos são uma arte da sociedade industrial, como o cinema, e não encontram paralelo em períodos anteriores à sociedade industrial, por não contar com o mesmo substrato social que a gerou. Quando digo isso, não estou, evidentemente, dando um juízo de valor. Uma grande história em quadrinhos pode ser melhor que qualquer grande pintura, e se existe algum motivo para que eu tenha migrado de uma atividade crítica para outra é o fato de achar que algumas as histórias em quadrinhos figuram entre as minhas obras de arte prediletas. Melhor dizendo, a maior parte das minhas obras de arte prediletas são histórias em quadrinhos.

Entretanto, essa não foi somente a causa da mudança de interesse desse crítico. O deslocamento proposto por vários historiadores da arte, como Argan e Belting, para ficar somente em dois exemplos, e os resultados adquiridos pela antropologia da arte, pelos estudos culturais e, finalmente pela cultura visual, além da própria abertura da arte para uma gama infinita de técnicas e meios, torna a tarefa de contar a História da Arte como uma narrativa sustentada pela própria logica, mesmo que atada ao lastro do mundo, uma profissão de fé. Se não uma temeridade.

Voltando às supostas origens dos quadrinhos - e levando em conta todas as complicações que supostas "origens" possam ter - alguns historiadores dos quadrinhos gostam de apontar três autores: Rodolphe Töpffer 
(Genebra, 1799-1846), George Colomb, apelidado Cristophe (Lure, 1856 - 1945), e, é claro Wilhelm Busch (Wiedensahl, 1832-1908).

Töpffer é um suíço de genebra, professor bem-sucedido e pintor de paisagens, que, durante várias décadas, cria uma série de narrativas visuais acompanhadas de texto, sendo duas das mais famosas delas Histoire de M. Vieux Bois e Historie d´Albert, de 1827 e 1845, respectivamente.

São realmente duas obras impressionantes. em Historie d´Albert,  Töpffer aplica um traço rápido e sinuoso, com poucas indicações de sombras e volumes, que levam a leitura de imagem como texto, até pela própria proximidade do traçado das figuras com sua caligrafia.  Töpffer consegue esse traço sinuoso e direto, por meio da autografia, uma técnica de gravura que transpõe o desenho do papel diretamente para a pedra litográfica, evitando o pesadume dos lápis litográficos ou os traços duros da gravura em metal.



obra de  Töpffer, onde podemos ver tanto a narrativa linear e direta quanto o tipo de ousadia gráfica que permeava toda a sua obra.

Uma outra característica que impressiona nessa obra são as improvisações com a diagramação da página, que em alguns casos chega a emular o movimento da leitura página, ou o aspecto da página semi-virada do próprio volume que contém a história, como em num caso de desconstrução metalinguística do veículo radical , que pode ser comparada as liberdades de outro suiço genial: o cineasta Jean-Luc Godard.

David Kunzle é o historiador de quadrinhos que mais se ocupa de  Töpffer, com monografias e edições de suas obras completas. O velho Goethe, entretanto, é o mais citado ao se falar do suíco, graças a uma entusiasmada missiva em que comenta uma de suas obras. Um velho cacoete dos historiadores de quadrinhos mais tradicionais, que é autorizar as criações dos gibis por meio da admiração de mestres da "alta cultura". Os americanos foram os primeiros, como era de se esperar, a transformar  Töpffer em um artista de cultura de massa, publicando o seu Histoire de M. Vieux Bois, transformado em The Adventures of Obadiah Oldbuck, nos jornais americanos.





obra de Cristophe

Cristophe, cujo nome é uma brincadeira megalomaníaca com o descobridor genovês, faz parte do desenvolvimento das  images d´Epinal (gravuras populares) para a grande imprensa. As próprias   images d´Epinal  são uma popularização rural (ou suburbana) dos grandes artistas gráficos da capital francesa, como Daumier. Cristophe têm uma trajetória curiosa, já que é biólogo e pedagogo de renome e suas gravuras o tornaram uma celebridade nacional.

Uma de suas obras mais famosas, a Família Fenouillard, já é uma tira cómica, ou página dominical com todos as características das suas sucessoras do século XX: personagens ingênuos com estranhas obsessões (Krazy Kat de Herriman, por exemplo), provincianismo que gera a piada no contato com a cultura cosmopolita (como Li´l Abner, de All Capp) e aventuras pelo mundo geradas mais pelo acaso do que pela coragem dos protagonistas ( Wash Tubbs, Tintim). O texto é virtuosamente literário, e o humor tem algo do desencanto do cientificismo do século XIX ("somos átomos jogados no poço sem fundo do infinito, minhas filhas"), com algo do racismo colonial que grassa nas páginas dos quadrinhos desde os seus primórdios.

O desenho de Cristophe apresenta mudanças paradoxais com relação ao trabalho de  Töpffer, meio século anterior. Por um lado, o francês lança mão de um naturalismo descritivo que o suiço evita, em prol de uma agilidade de execução. Por outro, será essa linha clara, descritiva e límpida uma das molas impulsionadores do quadrinho art noveau, do qual Winsor McCay, com seu Little Nemo, é o maior expoente, sem falar nas muito posteriores aventuras de Tintim, em que o traço limpo e detalhado passa a ser um poderoso aliado na caracterização dos diferentes cenários.




edições colorida e preto e branca, respectivamente, da obra de Cristophe, Família Fenouillard.




O alemão Wilhelm Busch ( Wiedensahl, 1832-1908) figura por último, por ter sido adotado como produto (ou seja, realizado por outros desenhistas e roteiristas) pela industria americana de quadrinhos, que vai ocupar todos as próximas postagens.

Busch pode não ser o mais brilhante dos três europeus, mas é, com certeza, o que mais se aproxima do caráter popular dos quadrinhos americanos que são, queiramos ou não, os mestres na arte. O termo popular foi usado aqui para descrever uma tomada de posição próxima a dos artistas da geração pop nas artes plásticas, ou seja, do lado de cá, do público, da produção cultural, e não posicionado como parte da vanguarda cultural e intelectual (Argan, de novo). O discurso popular não pode ser confundido com o discurso populista, esse sim posicionando-se como liderança intelectual capaz de "falar a língua do povo" para guiá-lo de cima para baixo, como nas vanguardas europeias.

A obra mais conhecida de Busch é Max und Moritz (traduzida no brasil por Olavo Bilac como Juca e Chico) e conta, de forma singela e bruta, as peripécias de dois meninos endiabrados. São poemas ilustrados, de personagens desenhados de forma modular e esquemática. Um modo de conceber o personagem que vai marcar toda a produção dos quadrinhos e do desenho animado do século XX, em contraste ao linearismo (ainda que descritivo) das gravuras europeias. Ao se conceber o personagem como uma estrutura - ou uma massa, como dizem os animadores - quase, digamos, tridimensional, criamos uma entidade capaz de ser transferida para diferentes cenários e situações sem perder a integridade. A estrutura de Max und Moritz é tão sólida, que permite que os personagens sejam reconhecidos até quando estão cobertos com massa de pão, ou somente com uma pequena parte do corpo visível.
Na obra traduzida para o português, o humor brutal de Bush chega a truculência, já que, depois de prejudicar quase toda a produção da aldeia local com molecagens cruéis (nem viúvas são perdoadas), os dois moleques são apanhados e triturados e dados de comer as galinhas. Uma piada que, convenhamos, faz as diatribes de Crumb parecerem quase comportadas.

Acho que não consigo aborrecer vocês mais do que fiz até aqui, nesse texto. Aguardem o próximo.






aqui estão imagens da obra traduzida por Bilac "Juca e Chico, história de dois meninos em sete travessuras". o desenho da forma dos dois no chão, como comida pra pato é sensacional.

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