quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Outcault

Como sabemos, a História é escrita do presente para o passado. Patriarcas do cânone transformam-se em mero parágrafo da História, quando o mesmo cânone é superado. Como a História é uma narrativa, as modificações do presente a determinam, modificando, dessa forma, o próprio Passado. Talvez não existisse Matisse e Picasso sem Cézanne, mas não existiria Cézanne sem Picasso e Matisse.
Como a História dos quadrinhos ainda é muito recente, um homem como Coulton Waugh, autor do clássico “The Comics”, pôde ser um intérprete contemporâneo dos grandes artistas da primeira metade do século XX. Ele supôs que aqueles seriam artistas fundamentais - e acertou, na maioria dos casos - mas não quer dizer que esteja certo para sempre. No caso de uma obsolescência do texto histórico, nos resta a verve, a metodologia do autor e - ironicamente, como atua sempre a História - o próprio texto transformado em um documento histórico. Útil para que tenhamos uma descrição do gosto e das idéias de uma determinada época.
Uma parte dos historiadores dos quadrinhos, principalmente os que escreveram à partir dos anos 50, considera a década de 30 e 40 a "Idade do Ouro" dos quadrinhos. Um momento em que as histórias deixam de ser cômicas e se tornam sérias, o desenho caricato segue passo ao classicismo de um Alex Raymond e de um Hal Foster. Enfim, a maturidade que segue a inocência da infância. Um preconceito muito comum em uma história evolucionista, típica do século XIX, que compara a cronologia histórica à biológica, tendo determinadas atividades humanas as correspondentes idades do homem: juventude, maturidade e decadência. Mesmo homens de temperamento vanguardista como Pound recaem nesse tipo de preconceito. 
Porque é um preconceito. Primeiro, parte de um juízo de valor: de que a maturidade é melhor, ou é sempre uma evolução positiva com relação à juventude. Isso não é verdade, principalmente em arte e cultura. Esse crítico, aliás, com o passar dos anos, tem cada vez mais achado que essa é mais uma ladainha eurocêntrica e chauvinista: o velho Continente ensinando bons modos e uma forma comportada de ver a História para o resto do mundo. E esconde os fatos: a potência da arte grega inicial e sua estagnação justamente no considerado Período Clássico, o classicismo aborrecido da maturidade do Barroco e o esteticismo aburguesado da maturidade do Modernismo.
Portanto, sou contrário a opinião de que da metade dos anos 30 até a metade dos anos 40 a História em Quadrinhos atingiu seu ápice. Porque não existem ápices, como não existem origens fixas e inalteráveis. Pelo menos em se tratando da história de artefatos culturais.
Para esse crítico, e não somente, os primeiros trinta anos do século XX, em que o próprio veículo se formava, se constituía, são, não somente um dos maiores momentos dos quadrinhos, mas um dos maiores momentos da Cultura Ocidental, assim como seus principais representantes - Outcault, Opper, MacCay, Feininger, Segar e, principalmente Herriman - são alguns dos maiores artistas de todos os tempos. E não somente nos quadrinhos.




O crítico Bill Blackbeard atribui a Richard Feldon Outcault (1863 - 1928) a primeira história em quadrinhos no formato como a conhecemos hoje. O americano, em uma tira da série Hogan´s Alley (Yellow Kid, como ficou conhecida), usa pela primeira vez, em 1896, os balões para o texto falado pelos personagens. É realmente muito difícil arcar com uma afirmação dessas, ou estabelecer um patrono para uma arte popular e de massa como os quadrinhos. O próprio Outacult abandonou os balões por um ano, sendo o recurso adotado definitivamente pelo autor da versão americana de Max and Moritz, The Katzenjammer Kids, de Rudolph Dirks. O próprio Outcault tinha um recurso muito mais espetacular - ainda que mais limitado - para passar suas mensagens, escrevendo-as no camisolão usado pelo seu personagem principal, ou em placas e objetos que aparecessem na cena. Curiosamente, na tira de Outcault em que ele supostamente usou pela primeira vez os balões, a fala veiculada sai de um fonógrafo, e não do personagem principal, em uma possível homenagem ao seu primeiro emprego, o de desenhista técnico e repórter visual do inventor Thomas Edson. Convém ressaltar, aliás, as contradições de datas dessa ocupação anterior de Outcault. A apresentação do fonógrafo de Edson em Paris, por ocasião da exposição Universal em paris acontece em 1900, data em que Outcault já trabalha como cartunista.
Outcault nasceu em Ohio, da onde partiu para estudar desenho em Cincinatti, aos 15 anos de idade. Seu primeiro trabalho, logo após estudar por 3 anos, foi o de desenhista técnico e repórter visual do inventor Thomas Edson. É por intermédio da influência de Edson que Outcault muda-se para Nova York, onde começa a trabalhar como ilustrador da revista Eletrical World, passando logo depois a fazer ilustrações livres, charges e caricaturas para a revista Truth, de onde foi pescado por Pullitzer para trabalhar em seu jornal, o New York World.
Após um ano, Hogan´s Alley, cujo título e conteúdo fora inspirado em uma peça da Brodway, já era um sucesso. Não era uma tira, nem mesmo uma página dominical, o que torna ainda mais estranho o título de "Pai dos Quadrinhos" de Outcault. Hogan´s Alley é uma prancha colorida, uma única ilustração, em geral uma cena central adornada por inúmeros pequenos acontecimentos.


O desenho de Outcault é sofisticado, propositadamente pontuado por imagens de diferentes qualidades de traçado, que tendem ora para a caricatura, ora para a gravura do século XIX, ora para a simples demarcação de um personagem. Essa profusão de tratamentos e formas de desenhar, atua de forma orgânica com a profusão de detalhes, mensagens e imagens das pranchas de Outcault, criando uma narrativa descentrada, anárquica e curiosamente parecida ao discurso da arte pós-moderna, notadamente as experiências de vídeo de gente como Nan June-Paik e a pintura de Kippenberger. 
O tema mais recorrente dessas grandes colagens de imagens é a carnavalização popular - e muitas vezes improvisadas por crianças - de rituais aristocráticos ou de classes abastadas. Desfiles, coroações absurdas, operetas e passeggiatas de gente pobre e tudo aquilo o que Bakunin disse que seria o cerne do carnaval: o deboche da pompa e da sensação de superioridade das classes dominantes.
Era uma prática contemporânea o humor centrado nos guetos das cidades grandes, as próprias comédias valdeville, uma febre da época, concentram-se nisso. Os Estados Unidos haviam crescido enormemente, e a massa de imigrantes e interioranos que buscavam espaço na cidade forneciam o arsenal de piadas baseadas em um racismo benevolente e mesmo na capacidade de auto-ironia dos representados.    

Após uma ano de publicação, Mickey Dugana estranha criança, provavelmente irlandesa, careca e de orelhas de abano, cujo um camisolão amarelo estampava dizeres debochados, já aparecia em marcas de sabonete, chocolates, roupas e pomadas, tornando Outcault um homem rico e seu personagem um fenômeno de mídia, gerando até mesmo a expressão "yellow journalism" para a linha editorial escandalosa e populista de publicações como a de Pullitzer. 
Por essa época, o cenário dos quadrinhos já era a guerra pela audiência entre os dois maiores magnatas da comunicação dos Estados Unidos e, possivelmente, do planeta: o próprio Pullitzer e William Randolph Hearst. 
Outcault foi protagonista de uma das inúmeras batalhas que travaram: Hearst roubou o cartunista do New York World de Pullitzer para o seu New York Journal, em 1897. A contenda também serviu para mostrar os limites aos artistas do entretenimento: Pullitzer proibiu Outcault de usar o nome Hogans Alley para as tiras que produzisse no Journal de Hearst, contratando o artista George Luks para realizá-la no seu próprio jornal. A diferença de qualidade não alterou o sucesso da tira e Outcault capitulou, criando em 1900 Pore Lil Mose, que até onde esse crítico conhece, parece ser o primeiro protagonista negro em uma história em quadrinhos.




Yellow Kid, que já sofria campanhas difamatorias pelo moralismo americano de plantão (agora auxiliado em sua cruzada pela pedagogia), que condenava o humor rude de crianças semi-analfabetas e algo violentas, deixa de existir em 1898. Percebendo o mudar dos tempos, Outcault aponta sua lupa, juntamente com parte do humor de vaudeville, para os pobres meninos ricos, e cria um sucesso comercial ainda maior que o anterior: Buster Brown.



Buster Brown tem a singeleza bruta de Max and Moritz e seu protagonsita invariavelmente leva uma surra após suas crueldades e ingenuidades. Transformou-se rapidamente em todo tipo de produtos até ter seu nome vinculado a uma marca de calçados que exite até hoje, enriquecendo mais ainda Outcault que pôde passar o fim de seus dias, muito depois de abandonar a criação de tiras, cuidando de seus royalties.



Buster Brown não é minha criação preferida de Outcault ou mesmo dos quadrinhos. Mas algo se manteve das suas obras anteriores: as imagens que parecem ter saído diretamente das embalagens e anúncios do século XIX, principalmente a diáfana mãe de Brown. alguns desenhos da personagem são realmente estupendos, lembrando os pre-rafaelitas tão admirados por  John Ruskin , ferrenho defensor da honestidade da arte industrial em contraste ao esnobismo da vanguarda. Mas não são os pre-rafaelitas que Outcault elogia, mas sim aqueles extraordinários artistas anônimos, os desenhistas de produtos em caixas de papelão, de beldades em vidros de shampoo, ou mesmo aqueles incríveis gravadores, que reproduzem as novas e maravilhosas máquinas da vida moderna em catálogos e anúncios. Outcault não foi o único a usar esse material com entusiasmo. O proto-pop Duchamp também os colecionava, como Manet colecionava os catálogos de roupas. O elogio da visualidade industrial, seu elogio sincero e maravilhado é o que vai construir a história da visualidade contemporânea, colocando Outcault ao lado de mestres da arte popular como Andy Warhol e Michael Jackson.  

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