sexta-feira, 2 de março de 2012

Winsor MacCay

  É salutar buscar razões para contradizer nosso próprio juízo. Nos ajudar a fortalecê-lo ou enfraquecê-lo, e mesmo abandoná-lo, quando ele não nos serve mais. De qualquer forma, pode ser um antídoto contra o cânone ou idéias estéticas sem a sua base material legítima, que são as obras de arte. 
Minha admiração por Winsor MacCay (1869 - 1934) é compartilhada por quase todo mundo que saiba quem ele é, dentro e fora dos quadrinhos. Mas, por algum motivo que devo vasculhar, não consigo me apaixonar pelo seu trabalho, apesar de reconhecê-lo como um dos maiores cartunistas de todos os tempos e o maior artista Art Noveau da História. Talvez falte - para mim - um daqueles defeitos que Shakespeare responsabilize pelo Amor ("por qual dos meus defeitos você se apaixonou primeiro?" vai indagar um de seus personagens). Ou me faça falta aquele ruído surdo da resistência da Matéria sobre a Ideia, que MacCay, como todo virtuose, ignora. "A imperfeição é o cimo", dirá Ives Bonnefoy, o poeta e ensaísta dedicado, justamente, ao outro prodígio técnico que nunca deixou de sentir e tematizar essa pressão, Alberto Giacometti. Ou simplesmente me falte debruçar sobre sua obra com a atenção necessária para escrever esse artigo.



Winsor MaCay  é o mais famoso cartunista do começo do século XX e, provavelmente, um dos mais extraordinários artesãos que essa arte - ou qualquer outra - tenham conhecido. Sua única educação formal em desenho foi dada em um curso livre na  Eastern Michigan University, enquanto o próprio MacCay frequentava a Cleary´s Business College, onde os pais o mandaram, como o nome indica, para tornar-se uma homem de negócios. Após um par de anos, MacCay viaja para Chicago para tentar ingressar, sem sucesso, no até hoje célebre School of the Art Institute of Chicago. Sem dinheiro para o curso, MacCay tem a sua primeira experiência como desenhista profissional na National Printing and Engraving Company, onde começou a fazer carreira como cartazista de circo e espetáculos. MacCay abandona a propaganda do circo para ingressar em um dos vários dime museum dos Estados Unidos como desenhista prodígio, além de estrelar alguns talk shows no mesmo estabelecimento. Os dime museums eram uma mistura de circo com gabinetes de curiosidades, de grande apelo popular. O Dime é uma moeda americana de baixo valor (10 centavos), o que indica o extrato social à que o museum é dedicado, em contraposição ao Art Museum, coisa de gente culta e rica. MacCay vai conhecer sua mulher nesse ambiente. 
Evidentemente, um talento como o de MaCay não ficaria limitado à fama circense e, como tantos outros, foi atraído para o mais pujante - e regiamente recompensado - meio artístico dos Estados Unidos da época, as páginas dos jornais. 
MaCay começa a publicar suas tiras e ilustrações no jornal Cincinati Enquirer, de Pulitzer, para depois - em um movimento já muito conhecido por nós e que se repetirá mais algumas vezes - passar para a equipe e os jornais de Hearst.
Seus quadrinhos oníricos começam com o título " A Dream of a Rarebit Fiend", uma expressão idiomática para sonhos amalucados, que tinham a fama de ser causados pela ingestão de coisas pesadas, como a torrada com queijo e manteiga do título. Na verdade uma brincadeira de época similar a contemporânea "azeitona da empada", quando bebemos e comemos demasiado e damos a culpa do vexame em algum detalhe insignificante. 
Os sonhos dessas primeiras tiras, assinadas com o pseudônimo de "Silas", tratam quase sempre da paranóia da vida moderna, das manias sem sentido que mantemos para ter em mãos algo de constante no mundo em fluxo do capitalismo moderno. "Rarebit Fiend" é contemporâneo das publicações de Freud, mas não é do austríaco que o americano trata, e sim da época, do Zeitgeist, como fazem as autênticas criações intelectuais. Uma das coisas mais irritantes de parte intelectualizada da arte contemporânea é justamente a justificativa teórica para o que todos estão vendo e vivendo, vitimando vários grandes nomes do pensamento ocidental como Foucault e Lacan (dependendo da época). A produção direta e baseada na vida é uma carência que faz muitos artistas migrarem para os quadrinhos, como fez esse narrador.


Da neurose da vida onírica adulta, MacCay, que nunca deixou de ser uma criança nem tão crescida, com seu 1,60 e 50 quilos, passa para "Little Nemo", sua criação mais famosa. A escolha por Nemo foi técnica, como era de de se imaginar. Em um ambiente onírico infantil, MaCay poderia desfilar toda o seu vocabulário da ilustração Art Noveau do século XIX, além criar arquiteturas góticas, apesar de reluzentes como as vitrines de seu tempo. MacCay faria habitar esse mundo por personagens típicos dos quadrinhos da época, como negros representados de forma grotesca e ofensiva, e ao mesmo tempo por princesas, deuses gregos e dragões. Ou seja, Maccay usa a Cultura como matéria prima, com a liberdade quase irresponsável que somente os grandes prodígios técnicos conseguem.
Na verdade, tudo o que MacCay quer é desenhar. Sua compulsão era famosa e alardeada pelo próprio artista. Sua atitude infantil com relação à vida, como um exibicionismo singelo, prodigalidade excessiva e ciúmes doentio de sua bela e aparentemente coquete esposa não são exclusividade do autor, mas também fazem parte da vida burguesa e noveau riche que o filho de imigrantes nascido no Michigan vai partilhar com seus contemporâneos e tantos homens de hoje. 
A forma, entretanto, fluida e fácil com que combina em uma só página todos os elementos da fantasia libidinal capitalista - incluindo uma sociedade monárquica em que os recém-conquistados direitos sociais são suprimidos - é realmente espetacular. E nos faz ver essa sociedade capitalista sob uma nova máscara. Ao invés do burguês gordo, materialista, pragmático e contrário a fantasia inútil, vemos o Capital travestido de uma criança burguesa, mimada e prepotente, que gostaria de suprimir o Tempo e o Espaço para realizar a fantasia brilhante de um Mundo como Mercadoria.


A própria forma de conceber a página, como uma unidade resultado de uma multiplicidade, remete não somente ao Cubismo e outras técnicas do modernismo como à propaganda e as vitrines dos magazines que tanto inspiraram esses mesmos movimentos. Ou seja a arte como produto, alcançada pelos Quadrinhos em seu nascedouro, sempre foi uma fantasia (e um recalque) da Arte, como podemos atestar não somente pelo Construtivismo e pelo Pop, mas como por iniciativas como as de Picasso, ainda adolescente em Barcelona, assinando como se fosse uma industria de um homem, e Matisse que chegou a fantasiar sua pintura como um lenitivo, um calmante para o burguês atarefado.
Entretanto, algo do pragmatismo burguês sobrevive na fantasia de MacCay. Seus personagens invariavelmente acordam, e se deparam com um mundo que insiste em se materializar, criando a resistência ao seu desejo. O garotinho burguês cujos serviçais obedecem seus pais mas mandam nele, a senhora cujo progresso material não percebe o quão maravilhoso e desinteressado é o seu amor pelo seu cachorrinho. E talvez seja, justamente, o ponto em que MacCay cede ao lado sombrio do Capital, a sua manutenção do status quo e seu materialismo dogmático, que tem sua versão social mais tenebrosa na economia política e na  real politik.


Essa forma de ver MacCay como o gênio da raça da ideologia burguesa não deve ser visto de forma depreciativa. Grandes artistas podem nos repugnar do ponto de vista ideológico e moral sem que deixemos de admirar o seu trabalho, como John Ford, Wagner, Tostoy e tantos outros. Ainda mais nos quadrinhos, um meio notadamente reacionário. Por outro lado, ao nos alienarmos sobre características específicas de um autor, corremos o risco de nos tornarmos fetichistas dogmáticos. Também não temos direito, entretanto, a obrigar alguém a gostar de uma obra pelo qual sente repulsa vital, como um judeu que realmente se incomodasse com o anti-semitismo de Tostoy, ou uma mulher negra que não suportasse ver até o final "Nascimento de uma Nação" de Griffith. Não é o meu caso com relação a MacCay.
De qualquer forma, é pouco produtivo cobrar de um artista o que ele não nos oferece, pelo menos como críticos de arte, como atentou com perfeição Lionello Venturi. Em outras palavras, não podemos pedir um desenho mais limpo e sintético de Crumb, ou mais detalhado e descritivo de Pratt, se o que interessa para o primeiro é passar uma ideia de impureza e obsessão e para o segundo criar uma narrativa leve, ágil e algo etérea. 
O que podemos é criticar os desenhos atuais de Moebius em que a luz sobrenatural de seus mundos cede espaço para um colorido pesado, sem imaginação. Ou quando a secura narrativa de Spiegelmann cede espaço a uma auto-celebração melosa e emocional.

Na verdade, o único momento em que a arte de MacCay cai de qualidade é quando seu chefe, o magnata das comunicações Willian Randolph Hearst, o transfere dos quadrinhos para a ilustração de um moralista e pedagogo da época, Arthur Brisbane, por pensar que um talento como MacCay não poderia perder seu tempo com os quadrinhos.  Um preconceito comum, que persiste até os dias de hoje, e do qual até mesmo homens de visão como Hearst - que, afinal, é um dos maiores mecenas das histórias em Quadrinhos de todos os tempos - cultivam. O resultado foi a queda de qualidade do trabalho de MaCay, aprisionado por temas de Brisbane como “Thank Heaven for Progress,” e “Our Glorious Public School,” e sua não muito posterior morte, por absoluta tristeza, privado do seu mundo particular de fantasia e aprisionado nos textos edificantes. Não seria a primeira, nem a última vítima da pedagogia. Afinal, o enquadramento a que um texto edificante acaba por limitar uma ilustração, acaba por violentar um homem que havia criado, antes ainda de Little Nemo, o personagem Little Sammy Sneeze, cujos espirros chegavam a destruir os quadrinhos da página.  


Existe uma história de MaCay que está entre as minhas favoritas de todos os tempos. Nela, um cartunista busca uma ideia e é atrapalhado pelo próprio MacCay, em um de seus raros auto-retratos. Aqui o texto - uma das poucas coisas que pode realmente ser criticado em Nemo - é delicioso. Minha preferência deve-se, acredito, à resistência de Mundo que aparece na tira, do criador sofrendo as agruras do cansaço, do tédio, do sono e do calor, e tendo como vilão o próprio ele mesmo, imerso de forma egoísta em seu próprio mundo. a linha grossa que cerca os personagens parece reiterar essa leitura, assim como a ausência de cenário. O trabalho como alienação, mesmo o trabalho criativo, culmina a obra.

Ainda que não houvesse desenhado sequer uma página de quadrinhos, Winsor MacCay seria um dos maiores nomes da cultura contemporânea por ter sido um pioneiro dos desenhos animados, tendo influenciado profundamente Walt Disney. 
O melhor texto que conheço sobre ele é do excelente Jeet Heer, chama-se "Little Nemo in Comicsland" e pode ser encontrado no site do Virginia Quaterly Review, uma revista sobre literatura e cultura.


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