sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

George McManus e as Family Strips

A Family Strip é um gênero de quadrinhos que vicejou na segunda década do século XX, baseado na vida cotidiana de núcleos familiares citadinos americanos. Como todo evento histórico nasce de inúmeros leitos antes de correr sob um único nome. Um deles, evidentemente, é a crescente mercantilização das tiras diárias por intermédio dos Sindicates (distribuidores de tiras) e o aumento significativo do público consumidor de jornais e, portanto, de quadrinhos. O crescimento desse público acontece também em qualidade, com a maior alfabetização da camada infantil da população e a cada vez maior participação da mulher na vida financeira e, portanto, cultural da família. 



The Gumps, de 1917, de Sidney Smith, é uma das mais bem-sucedidas Family Strips, . 

Outro fator passa a ser importante, e nisso também os distribuidores tem papel fundamental: as tiras começaram a ter continuidade. Não só do mesmo personagem, mas as histórias se desenvolviam muitas vezes dia a dia, em enredos que, apesar da piada auto-conclusiva, faziam parte de uma trama maior, a saber, a vida dos personagens que habitavam essas tiras. Tudo isso faz nascer não só as Family Strips como seus congêneres, as Kid Strips, Animals Strips, Sports Strips e assim por diante. Evidentemente, eram gêneros que já existiam em espécie, ou seja, como criações de artistas específicos, mas não como demanda, ou seja, como encomenda de um jornal ou sindicate. Essa demanda por histórias de gêneros encomendados, faz lembrar a estabelecida nos países-baixos, com relação à pintura, ainda no século XVII. Por essa época os estúdios e pintores eram conhecidos por suas especialidades, como paisagens  retratos, naturezas-mostras e, é claro, cenas domésticas, a Family Strip da Holanda luterana e altamente capitalista de então.


abaixo, um exemplo de Kids Strips, Just Kids, criada por de Ad Carter, em 1916, com o nome Our Friend Mush. A mudança para Just Kids aconteceu dez anos depois. 



e um exemplo de Girl Strip, Winnie Winkle de Martin Michael Branner, que estreia em 1923.




Abaixo, um típico exemplo, de 1918, de uma Family Strip, "That Son-In-Law of Pa's", de Charles H. Wellington.  E o contemporâneo, e bem mais sofisticado S´Matter, Pop? de Charles M. Payne.



As Family Strips quase sempre baseavam-se em um casal. Ás vezes com um filho. Ou filha, se o desenhista tivesse gosto por belas pin-ups. Esse casal provêm de alguma classe social emergente no período, como a nascente classe média trabalhadora, ou filhos de imigrantes já naturalizados americanos. As mulheres do casal são quase sempre megeras, ora enormes, corpulentas e algo violentas, ora somente dotadas da capacidade de perseguir incansavelmente o marido. Os homens são miúdos e também arquetípicos: mentirosos, procrastinadores, preguiçosos, com grandes esperanças em seus talentos mesquinhos. Fogem da esposa como crianças fogem das ordens dos pais. As filhas, quando as têm, são belas e não tão inocentes moças, cerceadas por admiradores e jovens fazendo-lhe a corte todo o tempo, para o desespero ciumento do pai e, muitas vezes, o orgulho ressentido da mãe. O filho, quando o há, é um pivete endemoniado que só faz piorar a terrível falta de transcendência do casal. 
Mas nem tudo são espinhos na vida das family strips.  Graças a necessidade de continuidade, os casais prosperam, e muitas vezes o leit motiv da história é o  próprio amor conjugal e a cumplicidade para vencer as encruzilhadas da vida, como na célebre Blondie, de Chic Young.
O mais importante era que o público se identificava com personagens que lutavam para pagar as contas, educar os filhos, adquirir respeito da sociedade e, se possível, comprar uma das novas máquinas extraordinárias do senhor Ford.


Bring Up Father de George McManus, em uma de suas primeiras publicações, em 1913.

Como todo movimento cultural histórico, seus precursores são denominados a posteriori, na tentativa mistificadora - e mesmo religiosa - de ver um só rosto onde encontramos milhares, sujeitos aos fatos e circunstâncias históricas. Um desses rostos é o de George McManus, cujo papel místico de fundador da Strip Family não diminui em nada o poder de sua obra.




Acima, um exemplo da excelência de McManus. O humor não acontece no desfecho, como nas piadas, mas acontece em todos os detalhes do texto e da linha. Os personagens são dados de forma que não é necessário acompanhar as tiras: o marido abrutalhado, a esposa ansiosa por participar da cultura vigente, a vizinhança esnobe e endinheirada, a criadagem, que diferentemente dos patrões, reage à chuva de flechas que interrompe o seu trabalho. Nos ricos as flechas interrompem o eterno lazer, e ainda assim mal são notadas. As flechas também são o pretexto perfeito para o grafismo em linha reta de McManus e o extraordinário jogo que consegue estabelecer entre figuras planas e desenho perspectivo. É realmente impressionante como McManus consegue o volume de figuras tão esquemáticas e simbólicas. Os detalhes do mobiliário, ainda mais quando ressaltados pelas flechas, a fruição prazerosa da tira. Atenção para o busto mau-humorado no quadrinho 5 (McManus sempre implica com essa praga da megalomania novo-rica burguesa do século passado, o busto encomendado), no detalhe  sacana da flecha na boca do retrato do patriarca barbado no penúltimo quadro e a beleza do quadrinho final, em que livros são alvejados até mesmo em suas páginas. Na sua furiosa busca pelo reconhecimento da elite, Maggie alveja e passa por cima de tudo, da Cultura - representada pelos livros e obras de arte - às outras pessoas. 



Essa realmente é das mais engraçadas histórias de McManus que conheço. De novo o deboche da vontade de ascensão social dos novos-ricos e seus recursos insólitos, como recorrer a um artista "europeu" para fazer-lhe um busto, ainda mais com o hilário nome de "professor pazaza" (curiosamente, até hoje, em são paulo, artistas guardiões da Arte Elevada e de sua História são conhecidos como "professores"). Soma-se a brincadeira com o naturalismo europeu e a lenda michelangesca da estátua que fala, "eu não recomendaria isso, professor". Depois, a situação bizarra de sair pra pescar com o maldito busto e seu uso como âncora. quando o busto é perdido, no fundo do lago, seu companheiro diz, "é a sorte de pescador!", mostrando que todos compartilham o gosto de Jiggs para com a arte dos novos-ricos. Alguns detalhes do desenho, como a parte do dique em que Jiggs pendura sua cartola e casaco, ou o rolo de cordas no chão, comentam o momento da cena, o fim-do-dia em que a atividade começa a ser substituída pelo marasmo e pelo descanso, como o próprio personagem. As letras, nessa história, também seguindo o traço art deco, são das mais bonitas dos quadrinhos de então.

Bring Up Father, foi a primeira tira americana a tomar o mundo, sendo publicada em lugares como a Noruega em 1921, na França, pela mesma época e na Bélgica, pouco depois, tendo inspirado o estilo chamado "linha clara" em artistas como Hergé e quetais. Mas sua influência não para por aí, tendo sido publicado no Japão ainda antes da segunda guerra mundial e influenciado de forma definitiva a fatura dos futuros maiores consumidores e produtores de quadrinhos do planeta. 
Também em seu país de origem a tira teve sucesso imediato, desde a sua primeira publicação, em 1913. O sucesso não pode ser explicado pela excepcional qualidade do trabalho de MacManus, sequer pela sua originalidade, ao usar o idealismo art deco para desenhar de uma tira de jornal (seria mais fácil explicar um possível fracasso por tal ousadia intelectual). Seu sucesso deve-se a empatia imediata de um público formado justamente pela segunda leva de imigrantes europeus quase iletrada e que, após a difícil adaptação em uma urbanidade ainda incipiente, consegue finalmente estabelecer-se. 
Inspirada em um sucesso do vaudeville do século XIX vista por McManus ainda em sua juventude, The Rising Generation,de William Gill, o casal Maggie and Jiggs, irlandeses de nascimento, enriquece subitamente graças a uma aposta bem-sucedida do marido nos cavalos. O dinheiro trouxe luxo, mas não o status social e cultural dos ricos de nascença. Todas as tiras desenvolvem-se em torno das tentativas de Maggie de se integrar aos ricos e letrados, desesperando-se com os antigos hábitos que Jiggs insiste em manter, como o carteado com os antigos amigos, os espetáculos de teatro de coristas e as bebedeiras em botecos sórdidos. Para deixar a situação da pobre Maggie ainda mais exasperante, a feiura do casal gerou uma deliciosa beldade que, como tal, não tem dificuldade nenhuma em ser aceita pela alta sociedade que trata com desdém a nada atraente e inculta Maggie.
A tradução literal de "Bring Up Father" seria algo como "O pai que me criou". Mas é somente mais um dos trocadilhos multifacetados da série, já que o "bring up", no caso, refere-se justamente as tentativas de Maggie de fazer Jiggs ascender social e culturalmente, transformando a expressão em algo como educar, apresentar para ou mesmo levantar, ascender o marido para a sociedade que Maggie julga sofisticada. Como sabemos, muitos casais tratam-se por "pai" e mãe", tratamento que, herdado das camadas proletárias ou não, aparece todo o tempo em suas representação artísticas até hoje. Por outro lado, a encantadora Nora, filha do casal, diferencia-se tanto dos mesmos pela sua elegância e beleza deco que esse epiteto poderia ser atribuído como sendo usado por ela para referir-se ao seu pai, se a mesma não mostra-se extraordinária frieza distante com relação as dificuldades da mãe e o orgulho proletário de Jiggs. Nora é o núcleo duro da obra de MacManus. A própria beleza idealizada, baseada nas embalagens de produtos da época, é uma metáfora brilhante da idealização que Maggie faz da alta sociedade americana.




Outra metáfora orgânica da fetichização em torno a "sociedade culta" é o excepcional uso da estética deco por parte de McManus. O deco, grosso modo, é uma moda cultural que tomou a Europa e os Estados Unidos nos primeiros anos do século XX. Nasce como uma leitura dos movimentos artísticos de Vanguarda Europeus e sua adaptação ao industrialismo da época (como o próprio vanguardismo é uma adaptação das "Artes Eruditas" ao industrialismo e a cultura capitalista de então). O Art Deco é a reificação e transformação em efeito das ideias do experimentalismo artístico do começo do século XX e, consequentemente, sua usurpação para o uso burguês de diferenciação de classe (assim como a arte de vanguarda pode ser lida como a usurpação burguesa da cultura popular). Evidentemente, como toda moda cultural, grandes artistas criadores, como Frank Loyd Wright, tanto usaram de suas ideias quanto as movimentaram e transformaram, dando-lhes a respeitabilidade dos livros de História da Arte e dos Museus. Mas é de exceções que são feitas as regras da História, e a grande arte é tão usurpadora e burguesa quanto a má arte. 
Pois bem, McManus faz o que a crítica burguesa chama de "pastiche" do estilo art Deco, democratizando-o entre a camada da população que o realizava industrialmente para a contemplação artesanal da elite cultural. Se McManus fosse um pintor, um escritor ou um músico erudito, chamariam sua adaptação de "releitura". E se já não fosse por ser um piadista irresistível, um artesão consumado e um artista brilhante, somente esse ato de vandalismo e subversão cultural com uma propriedade privativa da História da Arte já o faria um dos meus favoritos de todos os tempos. 
De qualquer forma, McManus é considerado um dos precursores das familys strips, e, com justiça, um dos seus maiores artistas. Sua capacidade de lançar um olhar amoroso, ainda que debochado, para as asperezas da vida, contrasta não somente com a brutalidade das tiras anteriores como Buster Brown de Outcault, mas mesmo com a pieguice reacionária de trabalhos posteriores, como Little Orfan Annie ou mesmo pieguice anódina de Blondie.
Como dissemos, centenas de outros nomes estão envolvidos na criação do gênero que, por sua vez, está diretamente relacionado ao crescimento monumental das tiras de quadrinhos nos Estados Unidos. E, como devemos ressaltar mais uma vez, ter participado efetivamente da criação de um gênero ou não, nada deveria mudar na apreciação da obra de um grande artista. Afinal, Morandi está longe se ser o criador da natureza- morta.