quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Trabalhadoras da América do começo do século XX



Dez anos depois da estréia de "Sallie Snooks, Stenographer", de Dink Shannon, comentado aqui nesse blog, além das heroínas de Brinkley e tantas outras, A.E.Hayward lançaria a sua versão da mulher trabalhadora Somebody’s Stenog” , em 1918. Outras protagonistas femininas que davam duro pela sobrevivência seguriam, cada vez mais numerosas e com diferenças entre os lançamentos cada vez menores. 
Alguns autores atribuem à Primeria Grande Guerra esse crescimento e reascendimento de uma demanda pelas girls strips que trabalhavam. Faz sentido. Afinal, além de seu envolvimento sem precedentes no próprio conflito, sejam como enfermeiras, operárias nas fábricas da guerra ou mesmo em trabalhos voluntários, muitas mulheres assumiram o comando do lar e das economias com seus maridos na guerra, ou tornaram-se arrimo de família. Também a ausência de mão de obra masculina abriu espaço para o sexo feminino em profissões antes vetadas, sem falar no reconhecimento dos serviços femininos na guerra. De qualquer forma, os quadrinhos são uma arte industrial, e como tal, atendem a qualquer demanda que possa consumí-la, independente de sua ideologia e lugar social, como bem atesta a indústria armamentícia.






Somebody’s Stenog conta as aventuras da secretária e estenógrafa Miss Cam O'Flage. Com relação à sua antecessora Sallie Snooks, de Dick Shanonn, e mesmo as mocinhas não-trabalhadoras dos quadrinhos do início do século, O'Flage apresenta maior densidade e uma personalidade mais rica, ou com mais "profundidade", como quer o filisteísmo crítico. Evidentemente, "profundidade", como qualquer outra característica, não pode ser considerado uma qualidade estética per se, mas Em Somebody’s Stenog, entretanto, a riqueza da personagem cria uma empatia com o leitor que a ajudou a participar da mudança de rumos das tiras de jornal. A saber, de piadas auto-conclusivas para as narrativas seriadas da segunda década do século. De fato, a loira O'Flage, sempre presente nas páginas dominicais, tem seus dias contados com simpatia e piedade (piedade que Hemingway considerava essencial para a obra de arte) e uma alternância de humores que ajuda incluse a denunciar a duração da jornada de trabalho como capaz de conter - e determinar - toda uma vida. As tramas são quase sempre idênticas: O'Flage recebe uma missão, distrai-se durante o trabalho, mas o acaso a ajuda a ser recompensada e reconhecida como a grande secretária que é. Suas aspirações são modestas e igualmente simpáticas: conseguir comprar um luxuoso casaco, poder tomar uma soda durante uma hora com uma amiga e namorar. 

O traço de Hayward é despretensioso, econômico e altamente narrativo, o que nos ajuda ainda mais a identificar O'Flage com uma agradável narrativa cotidiana. Suas pernas finas contrastam com o rosto redondo e desenhado de forma prosaica, e os diálogo se desenvovem sem dós de peito, mas também sem maiores tropeços estilísticos. Somebody’s Stenog é um comovente elogio da vida da mulher trabalhadora do início do seculo XX. Hayward trabalhou no personagem até 1939, quando morreu.


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O primeiro grande sucesso das girls strips viria, entretanto, com um ex-comediante e dançarino de vaudeville chamado Martin Branner, que criou em 1920 a tira diária Winnie Winkle, the Breadwinner. A tira diária trata, como em Somebody’s Stenog, de uma trabalhadora e de suas vicissitudes. Diferentemente de sua antecessora, entretanto, Winkley já participa da geração de tiras de continuidade, e suas aventuras transcorrem ininterruptamente por 76 anos, 26 anos depois da morte de seu criador e mais de 40 depois do derrame de Branner, que o obrigou a entregar a tira integralmente ao seu assistente Van Bibber.



A tira também traz a marca do substituto do até então onipresente Hearst como maior editor de quadrinhos do mundo, o capitão do exército americano Joseph Medill Patterson, fundador do jornal Chicago Tribune, entre outros. Patterson, diferentemente de Hearst, chegava a discutir os personagens e mesmo a tira como um todo com os cartunistas, sendo co-criador de várias delas. No caso de Branner, sua própria carreira - que vinha de dois fracassos anteriores com tiras que não conseguiram completar um ano de existência -pode ser atribuída a Patterson, que também encomendou e deu as diretrizes de Winnie Winkley.
Como dissemos, Winkley já nasce durante a febre das tiras com continuidade, como Gasoline Alley e The Smiths, e como essas, a vida da protagonista se modifica dezenas de vezes ao longo dos anos, como a adoção de um irmão menor - que se transforma no protagonista da página dominical - o casamento com o insosso Will Wright e seu desaparecimento durante a Segunda Grande Guerra, deixando Winnie viúva (provavelmente a primeira dos quadrinhos) e grávida. A personagem também passa da miséria para a fortuna para a miséria diversas vezes durante sua longa vida, um dos procedimentos mais usados nas tiras dos anos 20. 
A tira, criada durante o auge dos sindicates, também usa de outro expediente comum dos produtos da época, o de assumir vários gêneros de tira em uma só, podendo estrelar nos jornais tanto como uma girl strip, quanto como uma kid strip (no caso da tira dominical protagonizada pelo seu irmão adotivo), ou mesmo uma family strip, já que anos depois de desaparecido, o marido de Winkley misteriosamente reaparece em sua vida. 

   
Branner não chega a ser uma sumidade artística. Seu desenho beira o inexpressivo, e seu texto o irrelevante. Winkley foi seu único trunfo, mas realizou-a por muitos anos com o enlevo de um pai amoroso. Uma curiosidade a respeito da tira, entretanto, faz pensar sobre uma capacidade de captar a "estrutura de sentimento" de sua época, além é claro, do enorme sucesso de Winnie Winkley, que chegou a ser publicada em mais de uma centena de jornais por mais de meio século. Branner lançou diversas modas, e divulgou outras, por meio das roupas e objetos de desejo de sua protagonista. De fato, mais de um crítico já chamou a atenção para o apurado senso de moda de Winkley. Senso que talvez deva a Branner, ou simplesmente à sua equipe, ou mesmo ao personagem. Afinal se Branner nunca conseguiu dar vida à sua criação, suas milhões de leitoras ao redor dos Estados Unidos cuidaram disso, de uma forma que somente os grandes personagens da cultura de massa conseguem ser cuidados.  

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Tillie the toiler, de Russ Wetshover

Exatos dois meses depois da estréia de Winkley, Não se sabe se por coincidência, Zeitgeist ou mera competição,  Russ Westhover, por encomenda do sindicate King, assina a primeira tira da maior competidora de Winkley, e a única que vai alcançar o estrelato do cinema, na pele da atriz Marion Davies, Tillie, the Toyler. O personagem ganha uma página dominical após 1 ano de tiras diárias - uma prova cabal de popularidade - e sua vida desenvolve-se como uma novela, da mesma forma que Winkley. Tillie, entretanto, tem os seus momentos de transcedência do escritório - onde faz o papel da bela secretária morena, bem-vestida e de longas pernas - quando posa para lentes de fotógrafos da moda. A personagem passa os primeiros anos da tira sendo a obsessão do pouco agraciado MacDougall, mais um personagem desenhado com os traços dos cartuns do início do século, enquanto tillie era diligentemente traçada como uma ilustração das revistas de moda. Como Winkley, a vestimenta de Tillie é pesquisada e realizada com esmero, e como Winkley, vai lançar e divulgar modas e formas de comportamento entre as leitoras cada vez mais numerosas de jornais. 
Após três décadas de trabalho, Westhover passa a tira para o seu assistente direto, Bob Gustafson, que desenha e escreve Tillie até 1959, quando casa a beldade com o persistente MacDougall, para nunca mais serem vistos em tiras de jornais. Um caso espetacular de um personagem que sai da História (em quadrinhos) para entrar na Vida. 
O fato de ter sido adaptada para o cinema em 1927 mostra a intrínsica ligação entre os dois meios, que resultaria em uma verdadeira contaminação á partir dos anos 60 e na sua dissolução como maneira, nos anos 2000. Tillie the toiler não foi a primeira, nem mesmo a primeira girl strip a ser interpretada no cinema. Ella Cinder (1926) e o melodrama kid strip, Little Annie Rooney (1925), entre outros, já haviam conquistado a Grande Tela.  Nos quadrinhos, Segar fazia a sua desastrada tentativa de adaptar Chaplin para as tiras diárias. Mas a sua interpretação por uma estrela de primeira grandeza da época, como Davies, mostra que uma indústria começa a tratar a outra como tendo públicos equivalentes, coisa que o esnobismo cultural posterior vai considerar uma infantilização do público cinematográfico. Em tempos sombrios, os atributos da infância passam a figurar como demência. Ou pior.

página dominical devidamente roubada de outro blog. a top também é de Westhover.


A popularidade do personagem, permitiu que revistas femininas publicassem os modelitos de Tillie.